quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Obrigado Luiz Goes (1933-2012)

"Calou-se a "voz sublime" da Coimbra mítica, como lhe chamou Adelino Gomes no título de uma entrevista ao PÚBLICO, em 2008, há apenas quatro anos. Luiz Goes, cantor celebrado da segunda geração de ouro coimbrã, morreu ontem numa unidade de cuidados continuados de Mafra, onde estava internado havia algum tempo. As canções que durante tantos anos lhe ouvimos, na sua inconfundível voz de barítono, pareciam dirigir-se a personagens isolados na multidão que sempre contemplava: Balada para ninguém, Canção para quase todos, Cantiga para quem sonha, Homem só, meu irmão, Requiem pelos meus irmãos, É preciso acreditar, Canção para quem vier. Esta última, considerava-a a melhor de todas. Diz assim: "Quem vier,/ quer creia neste mundo ou não,/ aqui sonhe o mundo/ que os filhos terão." E ele sonhou-o a cantar. Nascido em Coimbra, a 5 de Janeiro de 1933, Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes foi criado num ambiente musical: o pai tocava guitarra, a mãe piano e o tio, Armando Goes, era uma das vozes mais marcantes da Coimbra dos anos vinte. Aos 14 anos, estreou-se no canto, numa festa do Liceu D. João III (hoje Escola Secundária José Falcão), onde foi colega de José Afonso, António Portugal, Carlos Couceiro ou Costa Braz, entre outros. Mas na casa dos pais era mais habitual ouvir-se Wagner, Beethoven ou Bach do que fado. Que é coisa que também se canta em Coimbra, mas erradamente se confunde com a canção de Coimbra, como ele gostava de sublinhar. "O fado-fado é em Lisboa. O que há [em Coimbra] é uma canção de matriz coimbrã". E começa na canção de estudante, que foi onde Luiz Goes se iniciou. Aos 19 anos gravou o primeiro disco, um 78 rotações. E depois de integrar o Orfeão Académico (onde foi solista) a Tuna e o Teatro dos Estudantes (o TEUC), deu voz, em 1958, integrado no Coimbra Quintet, à mais célebre gravação de Coimbra de todos os tempos: o LP Serenata de Coimbra. Nessa altura os ventos da tradição coimbrã estavam a mudar e Luiz Goes também se mudou, mas para Lisboa, depois de terminar a licenciatura em Medicina. Casa-se, tem o primeiro filho (casar-se-á segunda vez, mais tarde) e é chamado para o serviço militar. Cumpre-o na Guiné, como médico-alferes, e é só mais tarde, no regresso, que grava o primeiro LP em nome próprio, já como trovador de uma tradição coimbrã renovada e atenta ao mundo: Coimbra de Ontem e de Hoje (1967). Seguir-se-ão outros, num crescendo de maturidade: Canções do mar e da Vida (1969), Canções de Amor e de Esperança (1972) e, já nos anos 80, Canções para Quase Todos (1983). Em 2002, a integral da sua obra foi reunida pela EMI-Valentim de Carvalho numa caixa com 4 CD intitulada Canções Para Quem Vier. Mais uma vez, um largo horizonte. Ultimamente reformado da função pública, nas últimas três décadas Luiz Goes gravou pouco (em vários projectos alheios e num CD/DVD partilhado com João Moura, Coimbra: Espírito e Raiz) mas não lhe passava pela cabeça deixar de cantar, mesmo espaçadamente, nos lugares que lhe eram queridos. Ontem, quando foi anunciada a sua morte, não lhe pouparam elogios. Carlos Carranca, autor da biografia Luiz Goes: de Ontem e de Hoje (ed. Universitária, 1998), lembrou a "voz única", apontando-o como "o maior intérprete" da música de Coimbra. "Quando cantava, plural na singularidade do seu talento, Luiz Goes trazia consigo uma Coimbra inteira", disse. Para Rui Pato, músico, "é uma grande perda, era um grande poeta, um grande músico e um grande homem". Virgílio Caseiro, maestro, lembrou o "homem de grande carácter e verticalidade". A Sociedade Portuguesa de Autores sublinhou que Goes foi "um dos nomes mais representativos da história da música portuguesa na segunda metade do século XX, facto que foi por vezes injustamente esquecido". E Nuno Encarnação, que chegou a acompanhar Goes à viola, disse que Coimbra "tem de fazer tudo para que a sua memória perdure". Luiz Goes concordaria. Mas, como ele afirmou na já citada entrevista a Adelino Gomes, a Coimbra dele era diferente da que hoje tantos exaltam. Era a Coimbra de Conímbriga, dos castelos da periferia, da Lapa dos Esteios, de Pedro e Inês. Mas também "a dos que se reuniam diante da Sé Nova, a lançar imprecações a Deus, como Antero de Quental, agarrado ao Eça." Por onde quer que ande esta Coimbra, ela estará por perto quando lhe acenarem pela última vez. O funeral realiza-se hoje em Coimbra, após cerimónias religiosas na Igreja de São José, de onde sairá às 16h para o cemitério da Conchada." in Público, 19/9/2012

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